
Vivíamos uma década promissora para o urbanismo até a chegada da Covid-19. Tínhamos grandes metas para as cidades condensadas na Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas), explicitadas através dos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, as ODS. Todos voltados para a erradicação da pobreza, considerado o maior desafio global e pré-requisito essencial para um desenvolvimento inclusivo, sem deixar ninguém para trás.
Algumas cidades, inclusive, haviam traçado também objetivos ousados para a próxima década, independente das recomendações da ONU. Visando a promoção de uma vida mais digna e sustentável para seus habitantes.

Oslo, na Noruega, por exemplo, desejava exterminar o uso do automóvel, como conhecemos, até 2030; Madri, na Espanha, por sua vez tinha a mesma intenção, só que para sua área central. Melbourne, na Austrália, pretendia nos próximos 20 anos criar as condições para que todos os seus moradores estivessem a no máximo 20 minutos a pé de suas necessidades básicas cotidianas. Milão, na Itália, propunha que até 2030 ninguém mais iria fumar nos seus espaços públicos. Atitudes transformadoras no modo de usar a cidade e fazer a vida no cotidiano urbano. Todo este debate motivou a National Geographic a contratar a SOM (Skidimore, Owing’s e Merril), empresa de planejamento urbano muito respeitada internacionalmente, para produzir um documento anunciando como seria a cidade do futuro.

O resultado é um conjunto de princípios configurando um design mais humano para as cidades, com espaços assegurados para todos os cidadãos e suas necessidades, incorporando elementos da natureza na construção dos edifícios e sugerindo espaços para compartilhamentos de serviços e maior interações sociais no interior deles. Também propondo vizinhanças mais autônomas com as comodidades a 10 minutos de casa a pé ou de bicicleta. Chegaram a chamar de “Urbanismo Biomórfico”, onde edificação e infraestrutura seriam orientadas pela ecologia. De modo que a natureza pudesse sempre se regenerar e dar conta das demandas de populações crescentes. Destacavam como exemplo deste design mais humano das cidades, as vias inteligentes, o paisagismo estratégico realizado com espécies endêmicas, o incentivo aos pequenos negócios e ao trabalho colaborativo, a difusão do uso da bicicleta e dos edifícios flexíveis e adaptáveis a outros usos que não os originais. São sugestões para uma cidade do futuro sem considerarem muito as diferenças de orçamentos que separam as mais ricas das grandes aglomerações urbanas dos países pobres.

Talvez valesse esforço semelhante de formulação para cidades como as nossas, com acúmulo de carências e escassez de recursos. Mais recentemente Paris também resolveu adotar no seu sistema de planejamento o princípio da Cidade de 15 minutos, com todas as comodidades, empregos, compras e serviços perto de casa, alcançáveis neste tempo a pé ou de bicicleta. Cunhou inclusive o termo de “Crono Urbanismo”, de autoria do urbanista da Sorbonne Carlos Moreno. Que, em síntese propõe uma mudança radical da relação dos moradores da cidade com o tempo, sobretudo o consumido na mobilidade. Apostando portanto no fim da era dos automóveis e em uma revolução no modo de pensar e planejar as cidades. Com espaços públicos livres de emissões de gases efeito estufa (GEE), amigáveis aos pedestres e ciclistas, exterminando as vagas de estacionamento nas ruas e tornando as principais vias inacessíveis aos carros, entre outras medidas ousadas e inéditas.

Alguns pesquisadores da vida urbana já criticam tais formulações entendendo que elas também só seriam possíveis de serem levadas a cabo em cidades ricas e com bom padrão de infraestruturas instaladas. Não crêem, entre eles destaca-se o britânico Ricardo Sennett, que sejam replicáveis em cidades do Hemisfério Sul, por absoluta escassez de recursos para transformações tão custosas. Cá entre nós, se conseguíssemos cravar uma meta de 15 minutos, ou até de meia hora, gastos nos transportes públicos para os deslocamentos em nossas cidades, já seria um feito e tanto. Por aqui o desafio principal continua a ser o como, o onde e de que forma incluir os mais pobres. Uma questão não só difícil de equacionar como renitente, graças principalmente ao modelo de desenvolvimento gerador de excluídos permanentes.
Produzimos muitas casas, mas ao mesmo tempo há muita gente sem casa. Na última década construímos cerca de 4,3 milhões de moradias através do PMCMV (Programa Minha Casa, Minha Vida) e o déficit habitacional, que era de 7 milhões de unidades, mesmo depois deste recorde histórico de produção, manteve-se mais ou menos do mesmo tamanho. Isto, sem considerar que nem tudo aquilo que foi realizado por este programa teve boa inserção ou qualidade urbanística. A reprodução de nossas cidades, ainda com elevada carga de informalidade e precariedade em termos de infraestrutura, renova o estoque de carências e gera uma percepção de um urbanismo incapaz de fazê-las ficar melhor.

Nesta espécie de gangorra entre formulações e novidades interessantes e práticas concretas de desenvolvimento urbano marcadas por segregação sócio-territorial, tivemos que enfrentar a maior crise sanitária em cem anos, provocada pela Covid-19. Temos assistido à proliferação do vírus acontecer de forma mais acentuada e letal nas áreas mais fragilizadas das cidades. Indicando que sem a universalização dos serviços urbanos essenciais e sem a adoção de um modelo de desenvolvimento com maior coesão social e equidade no acesso às oportunidades não teremos cidades justas e nem tão pouco resistentes a pandemias semelhantes a esta.
Talvez valha a pena ficarmos atentos à experiência adotada recentemente pela prefeitura de Amsterdã, baseada em um modelo econômico desenvolvido pela professora Kate Raworth, da Universidade de Oxford, que propõe uma nova forma de prosperar. Batizada de “Teoria da Rosquinha” ela busca maior equilíbrio entre as necessidades das pessoas, cidades e países com os recursos ambientais disponíveis. Usando o slogan “crescer por crescer é filosofia da célula cancerosa”, indica caminhos para um pós capitalismo onde não será preciso “gastarmos o dinheiro que não temos em coisas que não precisamos”. À primeira vista, parece ter mais futuro para o urbanismo mudanças como essas no modelo de desenvolvimento econômico do que nas estratégias usadas para adjetivá-lo de biomórfico, crono urbanismo, cidades inteligentes ou assemelhados.

Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista, formado em 1977 pelas Faculdades Integradas Silva e Souza no Rio de Janeiro e doutorando em Urbanismo pela Universidade de Lisboa. Atua desde 1976 no setor público com passagens por sete prefeituras de cidades fluminenses e pela terceira vez no Governo do Estado. Atualmente, exerce o cargo de Conselheiro na Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP. Foi Diretor Executivo da Câmara Metropolitana Integração Governamental, entre outras atribuições responsável pela coordenação do Plano Diretor Estratégico da Região Metropolitana. Em 2006 presidiu o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Prefeitura de Volta Redonda/RJ onde coordenou a elaboração do Plano Diretor Participativo de Desenvolvimento Urbano. Em 2005, foi Secretário de Planejamento Urbano da Prefeitura de Barra Mansa/RJ, onde coordenou a elaboração do projeto de readequação do ramal ferroviário com reurbanização da área central da cidade.